1940: Uma enchente no Natal

FLÁVIO: Como é que foi, Magela, a questão da enchente? Porque as casas eram muito baixas. Perto do nível do rio, né?
MAGELA: E tinha o Paraibuna ali perto. O Paraibuna passava a 50 metros ou no máximo 100 metros da Avenida Surerus.
FLÁVIO: Vocês pescavam lá?
MAGELA: Pescávamos! O Seu Soares, marido da Dona Mariquita, que me levava no carnaval, era viajante. No final do ano, ele já tinha vendido tudo o que era pro natal, e em novembro ele vinha pra casa e ia pescar no Paraibuna. Ele armava as varas e os anzóis no rio Paraibuna ali em frente ao Sport. Armava as varas e de manhã ele ia lá e tinha bagre preso. Armava 8… 10 varas. Ele limpava os peixes, retalhava eles, colocava sal grosso, aquelas camadas, todo dia. E eu ia com ele. No Natal, aquilo era como se fosse o bacalhau. Aí ele tirava alguns daqueles e me dava pra mim, porque eu ajudava ele limpar a barriga, limpar aqueles peixes.
FLÁVIO: Então ele sabia preparar…
MAGELA: Sabia preparar! E o Paraibuna era pertinho das nossas casas. A gente atravessava a Henrique Vaz e estava próximo. Porque ele fazia uma curva ali, ele era muito sinuoso. Depois de 1940 é que Getúlio Vargas veio a Juiz de Fora e mandou retificar o rio. Ele acabou sendo retificado e está nessa formatação que ele está até hoje.
FLÁVIO: E como é que foi a enchente de 40?
MAGELA: A enchente de 40 nós não estávamos nem prevendo. No dia 24 de dezembro ou 23 de dezembro, uma caminhonete da Polícia Militar, do 2º Batalhão, passou naquela zona ribeirinha avisando pra todos saírem de casa, porque naqueles dias estava uma chuva intermitente. Pediram pra sair de casa porque o rio iria encher e poderia transbordar.
FLÁVIO: Quem passou avisando?
MAGELA: Alguns militares da Polícia, do Segundo Batalhão, avisando que era pra sair. E nós ficamos marcando a subida da água, nós moleques. Botávamos um pauzinho lá… “Aí vem a água.” De repente cobriu o pauzinho. Botávamos outro pauzinho e cobria. De repente estava na porta de casa.
FLÁVIO: Mas isso em um dia ou em mais dias?
MAGELA: Horas! Ela foi subindo.
FLÁVIO: E aí? Vocês saíram de casa?
MAGELA: Aí nós saímos de casa e fomos pra casa… Aí o meu tio Geraldo já tinha casado com a tia Marta e morava na Rua da Harmonia. Rua Harmonia é a Rua Setembrino de Carvalho hoje. É aquela rua que sobe do Ladeira e sai lá no Nossa Senhora Aparecida, aquela rua íngreme. Ela saía na linha, quando tinha a linha do trem, e saía no Mejolaro, que hoje é o Nossa Senhora Aparecida. Nós fomos pra lá, porque a água não ia chegar até lá, lá no alto. E nós íamos pra linha da Leopoldina pra ver a nossa casa dentro d’água. Mais de um metro acima da janela.
FLÁVIO: Vocês conseguiram tirar alguma coisa?
MAGELA: Nada! Por que que nós não conseguimos? Porque meu pai fez as compras de natal num armazém que tinha no largo do Riachuelo, do seu José Nader. Ele comprava no seu José Nader no caderno, seu Zé Nader confiava muito nele. Seu Zé Nader era um sírio. Ele vendia no caderno pra muita gente ali e meu pai era um dos fregueses que ele gostava muito. E meu pai foi lá e fez a compra do natal… de dezembro. Mas não comprou muita coisa, comprou só o necessário. Ele viu a lista de compras do papai e comparou com uma anterior. E mandou, além daquela que o papai tinha pedido, ele mandou mais coisas. Papai falou:
-O Zé não podia fazer isso. Eu não quero ficar devendo. Foi aquela compra grande… E a água tá subindo, tá subindo. Nós pegamos aqueles mantimentos e colocamos em cima de uma mesa. Colocamos a mesa em cima de quatro tijolos pra dar mais altura e colocamos os mantimentos todos em cima da mesa. A água passou por cima da mesa e acabou com tudo o que tinha sido comprado. A maioria era perecível. Tudo era perecível. E acabou. Ficamos rigorosamente sem nada. Não tinha uma toalhinha pra enxugar o rosto.
FLÁVIO: Mas essas coisas foram perdidas e estragadas ou deu pra recuperar?
MAGELA: Estragadas! Só salvou o meu presépio. O presépio que eu tinha feito naquele ano. A primeira vez que eu fiz um presépio. Eu era doido pra ter um presépio. E eu pegava na beirada do rio… Ia lá catar ferro que o pessoal da Mecânica e Litografia do Ladeira jogava na beirada do rio. Eu ia lá catava aquilo e vendia pro ferro velho. E com o dinheiro da venda do ferro eu comprava laranjas. E descascava as laranjas, forrava um balaio grande com um pano úmido, punha a laranja descascada ali com uma faquinha de sapateiro e vendia no campo do Bonsucesso no domingo. Aquele campo que eu comentei do Bonsucesso do Ladeira, que foi o primeiro clube que eu me apaixonei por ele. Bonsucesso não era um clube, era um estado de espírito. E quando nesse mês de dezembro… No meio do lixo tinha umas figuras de presépio jogadas fora. São José, o menino Jesus, Nossa Senhora, os três reis magos. Eu peguei aquilo e levei pra casa. Aí cheguei lá mostrei pra minha mãe, limpei direitinho, adquiri as outras pecinhas, um carneirinho, porque tinham muitos carneirinhos lá no lixo, e fiz o presépio. Fiz a minha gruta com papel de seda, embolava o papel de seda preta, fiz uma gruta. E estava o nosso presépio bonitinho e arrumadinho. Veio a enchente e passou por cima do presépio. Mas as peças ficaram no lugar. Aí aconteceu uma coisa que nos aborreceu muito. Os moradores da Avenida Surerus acharam que foi milagre, que o presépio também era pra ter acabado, e passaram a ir pra lá rezar. E era aquele movimento. Mas, antes, a Polícia Militar veio jogando cal virgem na rua e na casa. Nós tivemos que ficar fora da casa uma semana. Porque tinha cal virgem lá dentro pra matar os micróbios da enchente. Quando nós voltamos, lava, limpa e tal… O Presépio está lá. Esse presépio eu monto ele até hoje. Todo ano quem montava… Depois a minha mãe começou a montar. Até eu casar, em 1954, era eu que montava. Depois minha mãe começou a montar o presépio.
FLÁVIO: Com essas peças?
MAGELA: Com a maioria dessas peças.
FLÁVIO: Essas peças elas são de que Magela?
MAGELA: De gesso.
FLÁVIO: Elas estavam jogadas junto com aquele resto de metal da companhia mecânica?
MAGELA: Companhia Mecânica e Litografia União Indústria. Alguém jogou lá, não foi o pessoal da Mecânica, e por acaso eu achei. Aí montamos o presépio… E esse presépio vem nos acompanhando uma vida. Todo dia 24 de dezembro, eu não abro mão, nem a minha mãe abria mão e nem meu pai. Todos os filhos ali pra fazer a prece de final de ano. Todos.