FLÁVIO: Logo que o seu pai chegou aqui ele começou a mexer com o que?
MAGELA: Sapato, meu pai passou a ser sapateiro, mas ainda em Rio Novo. Ele tinha uns parentes que mexiam com sapato e ele aprendeu lá com eles. E foi ser sapateiro, e aqui em Juiz de Fora ele foi trabalhar de sapateiro e morreu como dono de casa de calçados.
MAGELA: Eu mesmo trabalhava na Drogaria Americana e saí, eu era manipulador.
FLÁVIO: Que tipo de coisa você manipulava?
MAGELA: Ah, não lembro agora assim não, mas tudo. Remédio pra dor de cabeça, remédio pra desarranjo intestinal, remédio pra gonorreia. Seu Miguel Giovanini era um dos que mais tratava de gonorreia em Juiz de Fora, chegou, bateu na mão dele, estava curado. Depois teve o Lessa, porque naquela época não tinha AIDS, há gente que diz por aí: “Ah que saudade que eu tenho da gonorreia”. Porque hoje não tem mais gonorreia, mas tem AIDS demais, e que não tem quase que cura e a gonorreia curava. Falando em Miguel Giovanini. Não tem uma homenagem a Miguel Giovannini…
O seu Miguel Giovanini separava as mais fáceis pra mim, porque a gente trabalha com aquela matéria prima que era importada, com aquelas balancinhas de precisão, porque aquilo tudo era medido pelos médicos. Os médicos davam e a gente manipulava as receitas. E o seu Miguel Giovannini tinha uma receita pra curar gonorreia que curava na certa. Mais tarde é que veio a penicilina, que doía pra caramba. Você tomava uma injeção de penicilina no braço, você ficava com o braço o dia inteiro doendo.
O senhor Miguel Giovannini foi um farmacêutico de muito prestígio em Juiz de Fora, muito.
FLÁVIO: Onde era a Drogaria Americana mesmo?
MAGELA: Era ali onde tinha aquele relógio no meio da rua Halfeld, ali hoje é um banco. A Drogaria Americana era do seu Edgar Salgado, que era vice-presidente do Sport. E o meu tio Dionísio trabalhava na Drogaria São Sebastião, que era do senhor Francisco Queirós Caputo, também do Sport, e ele (tio) era Tupi. Eu trabalhei lá e saí da Drogaria pra aprender o ofício, pra trabalhar de sapateiro. Pra tomar conta de uma oficina de sapateiro que o meu pai montou na rua Marechal Deodoro.
As madames, as mulheres da alta sociedade, pegavam as revistas importadas de sapatos e levavam pra ele. E ele fazia, desenhava ou copiava e fazia os sapatos para as madames e os sapatos para os homens ricos da sociedade. E fazia os consertos também. Meia sola, solado inteiro, os saltinhos de sapatos das mulheres. Porque usava muito fazer meia sola para aproveitar o sapato, porque o sapato era feito de couro. A parte de cima durava muitos anos, então a parte de couro estava boa e a parte de baixo da sola estava gasta, porque pisava no chão. Então se colocava meia sola quando não se podia colocar um solado, dependia do poder aquisitivo. E na casa Hilda ele ficou durante muito tempo, até que um dia a casa Hilda passou… Os donos casa Hilda frequentavam muito a alta sociedade, eram muito gastadores. E mais tarde eles se encontraram em dificuldades e tiveram que colocar um sócio. Eu lembro do nome dele porque aquilo ficou marcado, senhor Schwarten. Ele era um alemão. E ele veio pra fazer que aquilo que o meu pai fazia, que eram os desenhos, os cortes, os moldes e fazer o sapato. Porque o sapato era feito. Alguns eram feitos com taxinha de prego e outros eram todos ponteados, chamados dentro e fora, costurava dentro e fora. As famílias que podiam pagar mais: “O sapato meu é dentro e fora.” Ou seja, o sapato não tinha prego. Nisso meu pai era um artesão. Hoje quem faz um sapato daquele é um artesão. Não sei se tem tantos ainda vivos. E eu fui um artesão, fiz muito sapato de alto nível, pra alta sociedade de Juiz de Fora, depois eu conto como. Meu Pai então foi demitido, e o pessoal lá, pagou pra ele o que tinha que pagar, chamaram o meu pai, falaram com ele: “Olha, abre uma oficina pra você e vai fazer consertos. Você vai ter muito serviço porque nós vamos mandar tudo pra você lá. E se você precisar de comprar alguma coisa na casa de couro, onde vendia tudo pra calçados, nós vamos ser seus fiadores. Só não vamos continuar com você porque entrou esse sócio com dinheiro e tal.
Meu pai então, estávamos morando na Avenida Surerus. Meu pai então chorou muito e decidiu que ia embora: “Vou embora de Juiz de Fora, porque aqui não tem mais espaço pra mim.” E nós ficamos muito tristes. Ele me chamou pra vir à rua com ele, e nós pegamos o bonde no Ladeira, ah que saudade do bonde, e descemos no Parque Halfeld, em frente à Rua Marechal era um ponto. Ali tinha um bar, chamado Bar São Luís, na esquina da Marechal com a Rio Branco. Aí nós descemos a Marechal, aí chegamos na casa Brasil, e eu falei: “Ué pai, o que nós vamos fazer aqui?” Ele me disse: “Vou comprar uma camisa pra você.” Fomos lá e compramos uma camisa pra mim, uma camisa azul bonita. Quando nós estávamos saindo da casa Brasil, um senhor que tinha uma oficina de consertos em frente, senhor Salimena, chamou: “Ô Juca, vem cá”. Atravessou a Marechal, foi do outro lado, porque a casa Brasil era do lado esquerdo de quem desce e essa oficina de sapateiro era do outro lado. Então o papai contou ao Salimena o que aconteceu, que ele tinha saído e queria ir embora… “Não Juca, não vai embora não, eu te vendo essa oficina aqui, eu quero parar com sapato, eu não aguento banca mais não”. Porque o sapateiro trabalha numa banca, com as ferramentas do lado, com as peças ali e tal. E eu trabalhava na drogaria, aí o papai virou pra ele e falou: “Não. Não quero, vou embora. Não vou mexer com banca e fazer conserto, já passei desse tempo, hoje eu quero fazer o que eu vinha fazendo: modelagem.” Descartou: “Não quero não”.
E no caminho nós fomos conversando. Eu mais ele:
-Ô Pai, compra a oficina, compra aquela oficina.
E eu insistindo com ele. Insistindo.
-Não me chateia, eu não vou sentar em banca de sapateiro, eu não aguento mais fazer isso.
Aí nós viemos embora, pegamos o bonde, descemos ali no Ladeira, fomos pra casa na Avenida Surerus.
E eu contei pro meu tio Dionísio, que já era militar sargento do Exército, que morava na nossa casa, que eles foram morar com a minha mãe. Tio Dionísio, tio Geraldo e Madrinha Zezé. Foram morar com a minha mãe, depois que a madrinha morreu. E eu contei pro meu tio Dionísio e ele falou: “Mas o Juca podia comprar essa oficina.” Então o tio Dionísio foi falar com o papai:
-Ô Juca, o Geraldinho tá me contando aqui…
Eu era o Geraldinho da Dona Iaiá. A minha mãe tinha apelido de Dona Iaiá e meu pai era Juca. Então eu era o Geraldinho da Dona Iaiá, Geraldinho do seu Juca.
Aí o Dionísio, meu tio, ficou insistindo com ele:
-O que é que você vai fazer no Rio de Janeiro? Lá é outro mundo! Ninguém te conhece, a dificuldade de emprego lá é igual à daqui!
E foi colocando na cabeça dele até que ele resolveu comprar… Foi lá na Marechal encontrar com o seu Salimena. Eu fui com ele e meu tio Dionísio também. Aí fomos lá… Porque o meu tio era furriel da companhia do exército em que ele servia. Furriel é aquele que faz compras, aquele que cuida do patrimônio e aquelas coisas. Pelo menos era isso. Ele falou:
– Olha. Eu mando as botinas pra consertar, eu mando fazer tudo lá com você. É só você legalizar a firma, nós vamos legalizar a firma pra você.
Aí eu e papai fomos lá e acabamos comprando. O cara quase que deu. Leva isso pra lá e foi pagando mensal…
E o meu pai passou a ter muito serviço. Eu jogava no juvenil do Sport e saí do juvenil do Sport pra jogar no Central, que era um time da Rua Marechal Deodoro, onde meu pai tinha oficina agora. Eles me deram um dinheiro pra jogar pra eles, e eu dei o dinheiro ao meu pai. Porque o meu primeiro emprego foi na Fábrica Industrial Mineira.
FLÁVIO: Nos teares lá mesmo ou em que setor?
MAGELA: Fui trabalhar com o seu Duca. Tinha os teares… Depois de lá é que eu fui trabalhar na drogaria. E como o meu pai comprou a oficina, ele falou:
-E agora? Eu vou ficar sozinho aqui e dia e noite? Quem vai trazer meu almoço?
-Eu trago o seu almoço, o Expedito traz…
-Não vocês não vão dar…
Não queria vir sozinho pra cidade, tinha muita preocupação. Hoje as crianças andam pra todo lado.
Aí eu falei com ele:
-Eu vou sair da Drogaria e vou trabalhar com o senhor.
-Não você não vai fazer isso…
Aí entra o meu tio Dionísio:
-Não Juca, é bom que ele te ajuda e ele aprende também a profissão.
FLÁVIO: Mas nessa altura você ainda não sabia mexer com sapato?
MAGELA: Não, não sabia nada, só sabia calçar sapato!
E o movimento foi crescendo, tinha dia que ficava lá até 11 horas da noite. E aí eu fui aprendendo. Passar cola na sola que é pra depois… E aí eu fui aprendendo. E de repente eu me tornei um profissional e aprendi só vendo ele fazer. Aí ele arranjou mais dois auxiliares de sapateiro, que foram lá trabalhar com ele. E o movimento cresceu, e aí ele falava:
– É… Isso daqui tá muito apertado… Não posso pegar mais serviço. Não vou pegar.
Como é que você dispensar serviço?
FLÁVIO: Era pequeno lá? O espaço era pequeno?
MAGELA: Não era tão pequeno, mas era muito serviço que estava entrando! Dez solados por dia, cinco meia solas e por aí a fora. E os fregueses da casa Hilda que passaram a procurar? Aqueles fregueses que sabiam que era ele que fazia tudo.
FLÁVIO: E o ponto lá era melhor que o da Casa Hilda, né?
MAGELA: Mais ou menos igual.
FLÁVIO: Por que o da Casa Hilda era mais pra baixo, né?
MAGELA: A Casa Hilda era na Batista de Oliveira entre Marechal e Halfeld. Do lado direito de quem vai pra Marechal, pra quem sai da Getúlio Vargas é logo ali. E o papai ficou já querendo… Aí eu saí procurando e falei:
-Eu tenho que arranjar um local maior.
Até que eu vi, ali na Getúlio Vargas… Ali não tinha movimento, era um lugar ermo. Lá tinha um brechó de uma cafetina lá da Rua Floriano Peixoto. E estava lá vende-se, eu fui lá e ela estava vendendo o ponto. Aí eu falei: Ô gente, isso aqui tá bom pra gente transferir a oficina pra aqui. Aí eu peguei o meu tio Dionísio e fui lá com ele. Você vê que o Tio Dionísio e o Tio Geraldo estão ali na minha vida, quer dizer, é por isso que eu sou apaixonado por eles. Aí fomos lá. Olhamos de longe, chegamos perto, e fomos embora. No outro dia eu voltei lá:
-Quanto é que a senhora quer?
Ela falou o preço…
– Eu vou resolver isso, eu volto aqui.
– Não Demora não, porque eu vou vender pra outro!
Fui lá e falei com o papai. Papai: “Não… Vamos ver”. Meu pai tinha muito medo, sempre muito cauteloso, não gostava de se aventurar, nunca foi acostumado a dever um tostão a ninguém. E que nos ensinou também a não sermos devedores, comprar só o que pode pagar, às vezes tem vontade de comprar, mas não pode, não compra, pra não ficar em aperto futuro. E o papai ficou na dúvida. Ele não sabia que eu levei o tio Dionísio lá. Aí quando foi num domingo, de manhã, lá em casa, na Avenida Surerus, no número 44, ele falou com o tio Dionísio que eu tinha descoberto um ponto na Getúlio Vargas e tal… O tio Dionísio disse: “Você tem que mudar, lá onde você está é pequeno, lá você põe uma vitrine e umas caixas de sapato pra você vender também no varejo.” Encheu ele de entusiasmo e o papai foi lá, sozinho, na hora do almoço, saiu e foi lá. Eu não sabia não, fiquei lá tomando conta da loja. Ele chegou e me disse:
-Eu fui lá ver a loja, mas lá tem muita bugiganga. E a mulher quer vender não é a loja não, ela quer vender aquelas porcarias tudo. E aquelas porcarias eu não vou comprar.
Quer dizer, já estava disposto a comprar…
-Mas tem um problema, tem alguém na frente primeiro do que eu. Se o que está na frente desistir é que vai sobrar pra mim.
Aí eu fui lá, de tarde, nós fechamos a oficina mais cedo, por volta de 7 horas. E ela ficava aberta até 9 horas da noite, não passava ninguém e não vendia nada. E como meu pai ia por a loja ali é porque ele não dependia de varejo, ele tinha os fregueses dele de sapato novo e de consertos. Aí nós fomos lá. Chego lá e ela na queria vender de jeito nenhum, a não ser vendendo as bugigangas todas que estavam lá. Eram roupas daquelas prostitutas da Floriano Peixoto, mas vestidos bonitos, sapatos novos ainda. Porque elas sempre foram esbanjadoras. Vestiam uma, duas, três vezes e não queriam mais… Então aquilo vendia bastante. Mas acabou negociando e nós fomos pra lá. Fomos eu e ele pintar a loja, nunca fui pintor… Lixamos aquilo, arrumamos. Chamamos um amigo nosso da Avenida Surerus, o Zé Ferrari, ele era marceneiro. Pintou direitinho. Levamos o Zé Ferrari lá, ele fez duas vitrines, ficou bonitinho. E como é que vai chamar a loja? Não sabe, né?
-Geraldinho que vai falar!
-Ah, pai…
Eu sabia que ele era muito adepto e apegado a São Jorge, eu falei:
-O protetor do senhor, papai. São Jorge.
-Ah. É São Jorge!
E aí ele botou Calçados São Jorge. E o Calçados São Jorge ficou muitos anos ali, e ali eu trabalhei muitos anos com ele.