Geraldinho da D.Iaiá e do Seu Juca

FLÁVIO: Você era muito bagunceiro? Quem era mais bravo? Seu pai ou sua mãe?
MAGELA: Meu pai. Mas a minha mãe também não ficava atrás. O meu pai me bateu muito, mas não foi pouco não, porque eu era muito levado. E ele era muito rigoroso. O meu pai não admitia erro. Sério. Um dia eu recebi um pagamento na Companhia Industrial Mineira. E lá eles pagavam num envelope fechado. Você deve lembrar porque o seu avô também recebia um envelope fechado. Era até errado porque você não podia conferir, mas não errava. E eu chegava em casa e entregava o envelope ao meu pai. Meu pai sentava na mesa da cozinha, na sala de jantar e ia conferir. E ele conferiu e conferiu, e aí eu fui tomar banho, um sábado de dezembro, um calor terrível. Tomar banho pra dar uma volta, passear com os amigos e com os colegas. Eu já estava com 15 anos, aí meu pai conferiu lá e tal… Não me deu um centavo. Tomei banho, mudei a roupa, daí a pouco… E lá estava morando na nossa casa duas tias minhas, tia Glorinha e tia Lucília, que vieram de Rio Novo.
FLÁVIO: Irmãs do seu pai ou da sua mãe?
MAGELA: Irmãs do meu pai. Minha casa era um mundo de gente, né? Queriam arranjar emprego em Juiz de Fora. E a tia Lucília e a tia Glorinha estavam trabalhando. E o meu tio Dionísio arrumou emprego pra tia Glorinha na Sedan, lá dos Gerhein. Do Alcides Gerhein, o Laco Gerhein… Arrumou empregou pra ela lá na rua Bernardo. Aí ela recebeu também naquele dia o pagamento. Aí entreguei o dinheiro ao meu pai… E eu tinha uma gaveta na cômoda que era minha, eu botava minhas roupas, minha mãe separou. E a tia a Glorinha e a tia Lucília arranjaram outro lugar lá pra botar as coisas delas. Uma gaveta pra elas. Daí a um pouco, eu já tinha tomado banho, estava todo arrumadinho, a tia Glorinha começou a gritar que sumiu um dinheiro dela. “Sumiu meu dinheiro, sumiu meu dinheiro, sumiu meu dinheiro”. Foi lá o papai e perguntou:
-Sumiu aonde?
-Aqui na gaveta. Não está na gaveta. Eu botei o meu dinheiro aqui e está faltando. Não sumiu tudo não, está faltando. E foi o Geraldinho que tirou.
Eu tinha aberto a gaveta pra buscar minha roupa pra tomar banho. Olha… Meu pai me bateu, mas muito. A minha mãe ficou instigando e ele me levou pra dentro do banheiro, que era fora do corpo da casa, aqui na avenida Surerus. Mas bateu muito, me tirou sangue, machucou. Sujou a minha roupa toda que eu tinha tomado banho. E a minha mãe viu que ele estava passando do limite e foi lá pra tirar, porque se não ele ia me matar ali dentro daquele banheiro. Eu deitado no chão e ele em cima socando. Um homem educado, um homem sereno, mas quando tratava de um erro do filho ele se transformava. Aí conseguiu me tirar de lá. Aí a minha mãe puxou a gaveta e começou a tirar os panos que estavam dentro da gaveta, as peças de roupa e começou a balançar. Caiu uma moeda no chão. Era a moeda que ela falou que tinha sumido e que eu tinha roubado. E agora? As pancadas não tira. Eu não tirei nada. Eu não recebi um centavo dele, quando eu entreguei meu envelope pra ele. E agora? Ele não falou nada. Minha mãe foi lá me botar remédio, troquei a roupa, não quis sair de casa, fiquei chorando no quarto, sofrido, sofro até hoje… Lembro daquilo como se eu estivesse apanhando agora. Mas eu falo: malditas foram as pancadas que meu bateu e não me atingiram. Ainda precisei de mais algumas.
Meu pai chamou a minha tia Glorinha, pegou as roupas dela e foi botando tudo num saco. Falou:
-Ó. Sua mala é esse saco e a fechadura é o nó. Dorme aqui hoje. Amanhã de manhã eu não quero ver a sua cara aqui mais. Volta pra Rio Novo, vai pra onde você quiser. Aqui você não fica mais. Você me fez fazer uma grande injustiça com um filho.
A essa altura eu já tinha tomado banho, minha mãe feito os curativos, sangrei pra todo lado. Tinha um barracão nos fundos onde ele tinha uma oficina de sapateiro ali pra nos finais de semana ele fazer alguma coisa ali. Eu estava lá. Aí ele foi, chegou lá de noite. Aí ele sentou na banqueta, botou uma mão na minha perna… Mas eu até tremia. Minha vontade era de voar em cima dele. Estava sofrido ainda, né? Aí ele falou comigo:
-Não vim te pedir desculpas não. Eu vim falar com você que um dia você vai entender, você vai casar, um dia você vai ter filhos e você vai saber o que é criar filhos. Você não tirou o dinheiro, mas nunca na sua vida você vai tirar de ninguém. Filho meu não vai ser ladrão e nem veado.
E foi assim a última vez que o meu pai meu bateu. Mas foi um coça arrumada, ele tinha a mão grossa. Ele tirou o currião… E foi assim. Então é uma vida… Eu fui jogar futebol contrariando meu pai, contrariando minha mãe. Eles tinham muito medo de eu me machucar.
FLÁVIO: E quando você atravessava o rio de canoa? Era perigoso não era?
MAGELA: Eu aprendi a nadar no rio Paraibuna. Muita gente andava de canoa no rio. Tinha um senhor que morava perto do rio e ele tinha uma canoa. Ele vinha com a canoa do lado de cá e a gente entrava na canoa e atravessava pro outro lado. Não tinha perigo não, eu nunca soube que alguém tivesse sido morto porque a canoa virou. Não lembro. Nos domingos de carnaval as pessoas enfeitavam as canoas de carnaval, passeando pra cima e pra baixo. Botavam uns tipos que chamam fueiro nas laterais da canoa, enfeitavam e ficavam passeando. Isso eu vi no Paraibuna.
FLÁVIO: Não tinha a ponte do Manoel Honório, né? Qual era a ponte mais próxima?
MAGELA: Tinha a ponte do Manoel Honório de madeira. E a enchente levou a ponte, mais tarde é que ela veio a ser construída.
MAGELA: Eu era muito namorador, tive algumas namoradas maravilhosas, muitas moças bonitas e de grande escopo moral, de família. Algumas delas estão vivas.
FLÁVIO: Alguma em especial?
MAGELA: Eu não vou falar o nome dela não, ela vai ficar muito triste se ela souber. Pessoa fantástica.
Mas, um amigo meu, o Bembem, filho da Dona Mariquita, que me levava pra ver o carnaval, namorava uma moça que tinha apelido de Tieta, no Ladeira. E a Tieta levava a Neli junto e o Bembem não queria companhia pra namorada dele, ele queria arranjar um namorado pra companhia da Tieta. Era o tal segurar vela. Antigamente se usava essa expressão, “tá segurando a vela pra outra namorar”.
E essa expressão vem lá dos primórdios, quando não tinha luz, alguém ficava segurando vela pra um casal namorar. Pra não ficar no escuro. E tem sentido, né?
E eu jogando no Bonsucesso, as moças iam pra lá pra ver jogo. Eu não conhecia a minha esposa. Aí ele veio falar comigo:
-Ó, a amiga da Tieta está gostando de você. Ela é muito bonita.
E todo dia vinha com aquela encheção de saco:
-Ela tá gostando de você. Ela vai no jogo pra te ver!
Eu falei:
-Domingo você me mostra ela.
Aí no domingo ele me disse: É aquela ali.
Aí eu dei umas voltas em volta dela, ela era bonita. E aí eu falei com ele:
-Eu vou conversar com ela.
E fui. 1947 ou 48. Que coisa, né?
Eu estou vendo aquela imagem direitinho na minha cabeça. Eu, atravessando a Rua Maria Perpétua onde tinha um armazém na esquina, oficina de sapateiro do Ferucci, que era criador de galo de briga, e a gente ficava ali sentado muito conversando. E vem aquelas duas moças descendo da Maria Perpétua, essa é a primeira imagem, que eu tenho da Neli.